Vale a pena estar um tempo em Florianópolis. Está tudo lá, em tempo real, uma vez mais - por ser estudado como os geólogos estudam amostras de caudas de cometas para entender como chegamos até aqui. O passado no presente. E acelerado. Refiro-me ao modelo perverso de crescimento das grandes cidades brasileiras nas últimas décadas.

11 maio 2009

Civilização ou Barbárie?


Não se fala de tipos florianopolitanos. Fala-se de um protótipo humano local, o manezinho – embora mesmo esse tenha sido visto por poucos. Gostaria de propor duas novas personagens a esse minguado repertório: o Mané de Antolhos e o Mané Pícaro.

Vinha eu de bicicleta, à direita, pela Altamiro Guimarães (uma dessas ruas do centro que foram seqüestradas ao uso plural e entregues aos bunkers condominiais e paredões de shoppings), em velocidade normal, quando um veículo que estava estacionado, desses inspirados nos militares, se move sem dar sinal, e se me atravessa à frente. Perco o controle e caio ao chão, bem ao lado da janela do motorista. A pessoa olha pela janela e me pede desculpas. Eu me recobro do susto, levanto-me, a bicicleta caída no meio da rua – e verifico se havia quebrado algum membro. Nada. Olho fixamente para o meu algoz, que segue com as mãos no volante, como que a esperar que eu saísse da frente. Ela pede mais desculpas, e começa a insinuar que eu vinha “num pau”. Leio os seus pensamentos (!): concentra-se em montar uma estratégia de defesa que a desresponsabilize. Digo-lhe que ela não havia feito sinal que me indicasse o seu movimento futuro. Ter-me-ia ela ao menos visto pelo retrovisor? Tentara fazê-lo? A bicicleta continua ao chão. A motorista continua internada no seu veículo, sem oferecer ajuda. Eu continuo pasmo – embora, felizmente, sem sangue. Eis o Mané de Antolhos em ação, livre como um quero-quero.

Neste momento, enquanto alinhavo argumentos dirigidos ao Mané de Antolhos, ouço uma voz vinda de trás: “Uhu uuu”. Entra em cena o Mané Pícaro. Com a cabeça para fora do seu automóvel, aproveitava a oportunidade para fazer chacota de alguém que exigia a um terceiro o cumprimento de regras mínimas de convívio. O Mané Pícaro manifestava, assim, a sua solidariedade ao Mané de Antolhos, diante da carolice de um sujeito (euzinho) cuja vida quase foi interrompida pelo avanço inexorável deste último.

Mas qual o objeto dessa solidariedade? Uma hipótese: a simpatia entre os dois stock characters florianopolitanos referia-se à nostalgia de um Pai todo-permissivo, à fantasia de um mundo de gozo irrestrito. Nesse mundo, o que se assemelhe a regra de conduta e a argumento racional sabe a mofo, a tédio, a frustração, a fim de festa. Assim interpreta Zizek o capital político que detinham os senhores dos recentes conflitos dos Bálcãs. “Tu podes!”, era o slogan que terá aberto as portas à fraude cotidiana sistemática, à atuação estupradora, e um longo etc. Ao ocidente esses mestres da propaganda associaram o maquinário castrador das teias de proibições urbanas contemporâneas.

Esbatido o susto, restou-me a melancolia (e, confesso, a ansiedade) de sentir que não se havia tratado dum encontro com duas figuras idiossincráticas. As ruas pareceram-me então lugares de extremo risco. Mas vim a reconhecer naquelas figuras um traço humano demasiado humano, e em mim a agência fria do gozo kantiano na regra. Ambos, afinal, excessivos, ambos congraçados numa parte maldita. Ambos fadados ao fracasso e à destruição.

Voltei então ao teatro comum, com uma bizarra sensação de conforto.

A ilustração é do cartunista Andy Singer.

Um comentário:

Anônimo disse...
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