Vale a pena estar um tempo em Florianópolis. Está tudo lá, em tempo real, uma vez mais - por ser estudado como os geólogos estudam amostras de caudas de cometas para entender como chegamos até aqui. O passado no presente. E acelerado. Refiro-me ao modelo perverso de crescimento das grandes cidades brasileiras nas últimas décadas.

05 junho 2006

Os dez mandamentos da cidade civilizada

1. Dividirás o teu território utilizando um critério funcional: a cada zona atribuirás uma função. Assim, a tua cidade não existirá como um organismo característico em que cada parte (como que analogicamente) espelha o todo, mas como um “suporte” para circuitos de experiências isolados uns dos outros; para os mais ricos, elevados e máquinas voadoras encimarão os circuitos dos mais pobres.

2. Investirás toda a tua verba de infra-estrutura de transportes em asfalto e só em asfalto; isso contribuirá para a transferência de renda para os mais ricos e consumirá a verba que poderia ir, imprudentemente, para transportes efetivamente públicos (trens, bondes, linhas hidroviárias, bicicletários, etc.).

3. Os teus vereadores “ajudarão” o empresariado com as externalidades* dos seus negócios; adensa-se assim a teia de proteção dos viscondes e barões habitantes dos bairros ditos nobres, proteção sem a qual o curso natural das coisas (haver um grupo arbitrariamente dominante) poderia ser quebrado pelas hordas bárbaras da participação informada e efetiva.

4. Impedirás qualquer lei cujo fim seja combater a especulação imobiliária.

5. Permitirás que se construam prédios altos sem previsão de usos diversos no andar térreo, de maneira a contribuir para o desinteresse de cada quarteirão para a população em geral.

6. Deixarás o espaço visual e auditivo absolutamente livre à publicidade - e à propaganda!

7. A tua prefeitura abundará em pão e circo: leitinho das crianças e carnaval a qualquer hora (e propagandeará isso em peças publicitárias caríssimas encomendadas a agências de empresários “de confiança”).

8. Espalharás não-lugares – condomínios horizontais, freeways, grandes superfícies de comércio – de modo a contrair os espaços públicos, a identificação das pessoas com o seu território e a vivência desse território num tempo humano pleno de contactos: as cidades, afinal, devem ser equivalentes e intercambiáveis, de preferência sem que os co-habitantes se conheçam e interpelem demasiado, para que as pessoas estejam saudavelmente mais disponíveis a realocações e reengenharias.

9. Deixarás os serviços e estruturas mais básicas (saneamento, educação, saúde) sempre para depois: primeiro construirás cartões-postais que beneficiem a publicidade de futuras instalações hoteleiras, campos de golf e empreendimentos imobiliários em encostas de morros, à beira-mar e em santuários biológicos.

10. Atrairás O Turista não em razão do que és, mas com o que achas que O Turista quer, e te travestirás para ele: não alimentarás, portanto, uma forma de vida que exiba particularidades.


(Ludwig Heinrich Aminbergerhausen, in Carta de Esparta - Manifesto para um Novo Urbanismo, para uso do Príncipe Charmoso e Civilizado, 1927 – importante documento de teoria arquitetônica do brilhante arquiteto de Nichtstenstein, que tanto influenciou o nosso genial arquiteto Blocus Nieumeiquer).

* Os economistas chamam de externalidades aqueles custos que o empresário, digamos, empurra para o poder público. Por exemplo, uma empreiteira "ajuda" um vereador amigo a aprovar um prédio com menos vagas de garagem do que o exigiria a dimensão da edificação, barateando assim o preço de construção, e lançando para o poder público o imbróglio de lidar com o aumento de carros estacionados na região. Outro exemplo é a "ajuda" para convencer os vereadores de que aquele acesso rodoviário ao novo centro comercial é uma reivindicação da comunidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

O mandamento 10 ainda reeeennnde...desde que o paraíso açoriano saiu na Veja eleito exemplo de qualidade de vida e a prefeitura-publicitária local decidiu seduzir o público-alvo.
Será que estão encontrando nisso uma vocação inata pra ilha?

abraço Rafael
Othon.
http://www.kindertraum.blogspot.com/